A substância

Sei que preciso escrever sobre algo quando procrastino escrever sobre algo. Adiei assistir esse filme porque sabia que ele seria bem pesado. Para mim, foi quase da ordem do insuportável assistir, tive vontade de parar o tempo todo, ao mesmo tempo em que me vi hipnotizada por ele. Mas o "quase" abriu espaço para a elaboração. O impossível para mim sempre se torna possível através da escrita.

Tenho andado às voltas com o tema proposto pelo filme de maneira mais insistente há alguns meses, mas por toda a minha vida ele esteve bem presente. Enquanto mulher, artista e que também trabalha com a imagem, vi e vivi pressão estética durante todo o meu percurso, muitas vezes sem entender o que eu vivia.

“A substância” é um filme cheio de simbologias (adianto que esse texto contém spoilers). Não há sequer uma cena sem múltiplas camadas. Vejo esse filme como uma exposição macabra de um luto por uma perda narcísica irreparável que acontece com todo mundo na vida, mas que para a mulher é ainda mais avassaladora, pois vivemos em uma sociedade que oprime o envelhecer e julga o envelhecer da mulher. Somos ensinadas sistematicamente a como nos manter sempre jovens, como se isso fosse possível. Mulheres mais velhas se veem perdendo seu valor diante da passagem do tempo, algo que não podem controlar. É como se apenas a mulher jovem pudesse existir, viver, se relacionar, ser feliz, ter energia, sair de casa, ser vista e admirada.

A pressão é tamanha que mesmo mulheres mais jovens, como a Sue, querem outra versão de si mesmas, uma versão ainda melhor, ainda mais jovem. Há uma associação de juventude com beleza e da velhice com feiúra. A solução de muitas mulheres é buscar em procedimentos estéticos invasivos e dolorosos uma resposta para seu sofrimento, e às vezes se tornam tão reféns deles que acabam irreconhecíveis até para si mesmas. Se envelhecem, são julgadas e jogadas para o ostracismo social. Se fazem procedimentos estéticos na tentativa de conter as consequências naturais da passagem do tempo, são julgadas e muitas vezes de forma ainda mais severa. A cena mais impactante do filme pra mim foi a de Elisabeth no palco do show do fim de ano, já com o corpo todo deformado, jogada no chão pela plateia horrorizada, dizendo "sou eu, ainda sou eu!". Ela diz tanto nessa pequena frase.

Negar o envelhecimento, o adoecimento do corpo, o imperfeito, também é negar a morte. Mas para a mulher, que tem seu corpo objetificado o tempo todo, envelhecer traz camadas de sofrimento por vezes indizíveis. Que bom que temos a arte para expressar o que muitas vezes não conseguimos, ou não podemos, ou não sabemos como dizer. O filme mostra desde o início a repulsa pela velhice da mulher. Hoje vemos também o movimento contrário de romantização da velhice, talvez em uma tentativa de amenizar as dores que ela carrega, dores do corpo e dores psíquicas. Será que existe um caminho do meio? Será que é possível ser mulher e construir uma velhice menos sofrível?

Me lembro de um momento catártico para mim quando no final de uma sessão de análise, enquanto falava de fotos antigas minhas e do quanto eu "era bonita e não sabia", comecei a questionar se tinha me descuidado da aparência e cheguei a uma resposta bem mais simples. Não houve descuido, houve o tempo que não parou. Houve a vida. Eu envelheci e me deparei com os efeitos colaterais. Como cada um vai lidar com eles, é da ordem do singular.

Impossível esgotar o filme em um texto. O que eu trouxe aqui foi um recorte dele que mais gera movimento em mim. Como não é possível esgotar o tema, vou deixar uma última cena marcante, quando a Sue resolve trancar a Elisabeth em uma espécie de porão dentro do banheiro, que ela construiu para esse fim. O eu mais jovem não consegue lidar com a imagem do eu mais velho, por isso se alimenta mais e mais dele, que vai se desfazendo, e mais do que o esconder de si e do mundo, o sepulta, sem se dar conta de que estava sepultando a si mesma.

Não sei se um dia vou querer fazer algum procedimento estético. Realmente não tenho essa resposta. O que escolho hoje é não me trancar em um porão no banheiro. É não me esconder do mundo, e mais do que isso, não me esconder de mim.

Independente das suas escolhas, mulher que me lê, que você também possa encontrar maneiras de não se esconder e de criar para si um envelhecer mais consciente e saudável.